A
Brincadeira Ainda Continua Viva e Tem Muita Coisa a Ensinar
“Um
quadro vive na vida, como uma criatura viva, passando pelas mudanças
impostas por nossa vida a cada dia. Isso é bastante natural, pois o
quadro vive apenas através de quem o olha.” Pablo Picasso.
Enquanto
sujeito pensante e que propõe reflexões tenho algo que me inquieta
em nossa arte; falo da discussão sobre a Capoeira Contemporânea que particularmente penso não se tratar de um estilo, mas sim de um
momento em que todos nós vivenciamos.
Todos
sabem que vivemos em culturas distintas e que os processos de
aculturação fazem parte da formação das pessoas, das sociedades.
Seria muito direto e sem maior aprofundamento pensar ou simplesmente
acatar esse termo como sendo um estilo de capoeira ou como explicação
para as mudanças que a capoeira sofre e sofrerá ao longo dos
tempos.
A
contemporaneidade é o atual, o agora, o hoje. É importante tentar
compreender que esse termo “contemporâneo” nos chega porque o
termo moderno, já não mais abarcava as mudanças no mundo e a
velocidade que elas ocorrem. Isso diz respeito à arte, a tecnologia,
as mudanças políticas e socioculturais que o mundo moderno do qual
passou a ser chamado mundo contemporâneo vem sofrendo.
Se
a capoeira é uma cultura obviamente também estará ela sofrendo
mudanças constantes. Sabemos que existe a designação de um estilo
de capoeira como contemporânea, mas acredito ser equivocado e acho
que essa denominação vem da falta de compreensão quanto ao que se
pratica hoje com a capoeira e principalmente ao próprio termo. Todos
os grupos e estilos de capoeira praticados hoje são contemporâneos,
inclusive àqueles grupos e mestres que trabalham e preservam as
tradições de Capoeira Angola ou Capoeira Regional, porque o fazem
na contemporaneidade, no hoje.
Penso
que um mestre de capoeira tenha que ser um homem do mundo, um homem
contemporâneo, que saiba lidar com o presente, que entenda o passado
e que possa vislumbrar o futuro, isto é, ser um sujeito à frente
dos outros. Mestre Pastinha e Mestre Bimba não eram assim?
Quando Mestre Pastinha falava sobre a capoeira, que seu fim é
inconcebível ao mais sábio dos mestres? Isso não é está à
frente da sua contemporaneidade? E quando Mestre Bimba criou a
Capoeira Regional, criando um método de ensino baseado nas
necessidades de sua contemporaneidade? Isso também não é estar à
frente de seu tempo? Mestre Suassuna criou o estilo Miudinho e agora
mais recentemente o Mestre Camisa criou o estilo Benguela para mim
ambos também tiveram visões além do hoje quando fundamentam suas
criações e adaptações.
Em
um debate bem produtivo num grupo de WhatsApp do qual faço parte, um
sujeito estava a defender o estilo Capoeira Contemporânea. Ele
falava coisas sobre o balanço na ginga, sobre algumas
características adotadas por certos grupos - que eu particularmente
as vejo como robóticas da qual tiram todo o individualismo do
capoeirista. O sujeito passa a ser grupo e não ele mesmo dentro de
uma determinada comunidade. A espontaneidade vai embora e todo mundo
ginga igual, tem as mesmas mandingas - se é que posso chamar assim –
realizam os mesmos movimentos, enfim. No decorrer da conversa veio à
tona o estilo Benguela e aí foi um pouco mais complicado, porque
nesse caso e na grande maioria deles as pessoas confundem a Banguela
- criada por Mestre Bimba e que tinha como premissa esfriar os ânimos
do jogo – com a Benguela estilo criado por Mestre Camisa. Assim a
conversa aconteceu e ao tempo que tentávamos entender um em
detrimento do outro essa compreensão não ocorria por conta deste
equivoco estabelecido.
Findando
a conversa tentamos achar uma definição para os estilos de capoeira
Angola, Regional e Contemporânea. Nesta tentativa percebemos que as
definições das capoeiras Angola e Regional eram claras e evidentes
e assim não necessitavam de explanações naquele momento, pois o
que queríamos mesmo entender e definir – se é que exista uma
definição - era o tal estilo contemporâneo. A grande percepção
daquela conversa foi que não conseguimos de maneira alguma definir o
que é o estilo de capoeira contemporânea!
As
variadas formas de jogo, as composições das baterias e os rituais
estabelecidos sempre nos mostram que a capoeira é uma cultura de
várias tradições, relacionadas a cada mestre e a cada grupo.
Os conhecimentos tradicionais e a filosofia de vida que tanto se fala
na capoeira são muitas vezes trocados pelo modismo por uma parcela
de capoeiristas que seguem o que conhecemos como cultura de massa ou
como fala o Mestre Nestor Capoeira: “massificação do individuo,
onde os valores máximos são a tecnologia e o dinheiro, e a cultura
tem seu grande representante na televisão.”
Apesar
de ser arriscado enveredar por este caminho não podemos desprezar
esse momento onde a cultura de massa impera, onde o capital está
acima de tudo, onde o lucro e a busca incessante pelos desejos
pré-concebidos por essa alienação pré-meditada são a mola mestre
do mundo e do Brasil especificamente, mesmo porque é muito difícil
no mundo de hoje viver sem consumir a indústria cultural de massa.
Mas como viver sem emergir e vivenciar estas novas proposições que
estão a nos ofertar?
Isso
me faz refletir que temos que exercitar o que Baudelaire fala: “...
tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de
extrair o eterno no transitório.
Também
não há como deixar de pensar e estar atento a condição de sermos
repetidores de preceitos e ideais que a cultura de massa nos impõe.
Esse é o risco que corremos e que muitos já absorveram e
prontamente reproduzem. Os sujeitos esquecem suas próprias histórias
de vida em detrimento a esta nova situação. Alguns chegam a mudar
seus apelidos apenas porque trocaram de grupos. As falsas e ilusórias
promessas da moda, como a fama, o status e o poder são aniquiladores
do eu de cada um e faz com que esse sujeito se torne outro sujeito.
Um novo sujeito sem história, sem tradição. Um sujeito que faz
questão de esquecer seu passado. Um sujeito vendido e comprado a uma
condição de ser. De ser igual, de ser repetitivo, de ser o mesmo
sempre, robotizado em sua movimentação, alienado em um discurso
criado a partir de idéias dos outros e não por um ato de pensar e
refletir.
Assim
se constrói um estereótipo do capoeirista contemporâneo do qual
deve ser um sujeito que faça e reproduza a semelhança, no sentindo
em que Foucault nos chama a atenção: A semelhança tem um
“padrão”: elemento original que ordena e hierarquiza a partir de
si todas as cópias, cada vez mais fracas, que podem ser tiradas.
Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e
classifica. O similar se desenvolve em séries que não têm começo
nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não
obedecem nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças
em pequenas diferenças. A semelhança serve à representação, que
reina sobre ela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está
encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer.
E
assim os capoeiristas buscam seus estereótipos, conforme as regras
impostas pelo meio em que convive.
Apesar
de toda discussão que o tema gera sei que enquanto sujeito da
capoeira e do mundo tenho que procurar entender essas mudanças que
vem ocorrendo com nossa arte a partir da compreensão de que o fazer
contemporâneo é algo transitório e efêmero porque ele é o hoje e
que esta reflexão é importante para pensarmos quais tradições ou
estilos adotamos por fundamento, pois corremos um grande risco de
aprisionar a capoeira com características e referências que na
verdade são particulares de cada escola, de cada grupo. Como é o
caso de tocar e jogar Banguela pensando ser Benguela e vice e versa.
Parece-me
coerente buscar o entendimento apontado por Konder; de que “nenhuma
dessas criações pode ser adequadamente compreendida e assimilada
pelas épocas que vieram depois delas sem um exame das condições
específicas em que cada obra foi elaborada; cada uma delas possui
uma ligação com sua gênese; mas, na maneira de expressarem o
momento histórico em que nasceram, elas conseguem acrescentar algo
ao processo histórico como um todo”.
Algo
que fica muito claro após essa reflexão é o fato de ter sempre que
me perguntar: O que me move na contemporaneidade enquanto sujeito da
capoeira e do mundo?
E
assim como disse Muniz Sodré, “a brincadeira ainda continua
viva e tem muita coisa a ensinar”!
Então
vamos começar a brincadeira, brincadeira de capoeira; vamos começar
a brincadeira, brincadeira de capoeira...
Axé!!!!!
Orismidio Duarte –
Caboré Terreiro Capoeira.
BIBLIOGRAFIA:
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