domingo, 27 de março de 2016

A Brincadeira Ainda Continua Viva e Tem Muita Coisa a Ensinar

A Brincadeira Ainda Continua Viva e Tem Muita Coisa a Ensinar

Um quadro vive na vida, como uma criatura viva, passando pelas mudanças impostas por nossa vida a cada dia. Isso é bastante natural, pois o quadro vive apenas através de quem o olha.” Pablo Picasso.

Enquanto sujeito pensante e que propõe reflexões tenho algo que me inquieta em nossa arte; falo da discussão sobre a Capoeira Contemporânea que particularmente penso não se tratar de um estilo, mas sim de um momento em que todos nós vivenciamos.
Todos sabem que vivemos em culturas distintas e que os processos de aculturação fazem parte da formação das pessoas, das sociedades. Seria muito direto e sem maior aprofundamento pensar ou simplesmente acatar esse termo como sendo um estilo de capoeira ou como explicação para as mudanças que a capoeira sofre e sofrerá ao longo dos tempos.
A contemporaneidade é o atual, o agora, o hoje. É importante tentar compreender que esse termo “contemporâneo” nos chega porque o termo moderno, já não mais abarcava as mudanças no mundo e a velocidade que elas ocorrem. Isso diz respeito à arte, a tecnologia, as mudanças políticas e socioculturais que o mundo moderno do qual passou a ser chamado mundo contemporâneo vem sofrendo.
Se a capoeira é uma cultura obviamente também estará ela sofrendo mudanças constantes. Sabemos que existe a designação de um estilo de capoeira como contemporânea, mas acredito ser equivocado e acho que essa denominação vem da falta de compreensão quanto ao que se pratica hoje com a capoeira e principalmente ao próprio termo. Todos os grupos e estilos de capoeira praticados hoje são contemporâneos, inclusive àqueles grupos e mestres que trabalham e preservam as tradições de Capoeira Angola ou Capoeira Regional, porque o fazem na contemporaneidade, no hoje.
Penso que um mestre de capoeira tenha que ser um homem do mundo, um homem contemporâneo, que saiba lidar com o presente, que entenda o passado e que possa vislumbrar o futuro, isto é, ser um sujeito à frente dos outros.  Mestre Pastinha e Mestre Bimba não eram assim? Quando Mestre Pastinha falava sobre a capoeira, que seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres? Isso não é está à frente da sua contemporaneidade? E quando Mestre Bimba criou a Capoeira Regional, criando um método de ensino baseado nas necessidades de sua contemporaneidade? Isso também não é estar à frente de seu tempo? Mestre Suassuna criou o estilo Miudinho e agora mais recentemente o Mestre Camisa criou o estilo Benguela para mim ambos também tiveram visões além do hoje quando fundamentam suas criações e adaptações.
Em um debate bem produtivo num grupo de WhatsApp do qual faço parte, um sujeito estava a defender o estilo Capoeira Contemporânea. Ele falava coisas sobre o balanço na ginga, sobre algumas características adotadas por certos grupos - que eu particularmente as vejo como robóticas da qual tiram todo o individualismo do capoeirista. O sujeito passa a ser grupo e não ele mesmo dentro de uma determinada comunidade. A espontaneidade vai embora e todo mundo ginga igual, tem as mesmas mandingas - se é que posso chamar assim – realizam os mesmos movimentos, enfim. No decorrer da conversa veio à tona o estilo Benguela e aí foi um pouco mais complicado, porque nesse caso e na grande maioria deles as pessoas confundem a Banguela - criada por Mestre Bimba e que tinha como premissa esfriar os ânimos do jogo – com a Benguela estilo criado por Mestre Camisa. Assim a conversa aconteceu e ao tempo que tentávamos entender um em detrimento do outro essa compreensão não ocorria por conta deste equivoco estabelecido.
Findando a conversa tentamos achar uma definição para os estilos de capoeira Angola, Regional e Contemporânea. Nesta tentativa percebemos que as definições das capoeiras Angola e Regional eram claras e evidentes e assim não necessitavam de explanações naquele momento, pois o que queríamos mesmo entender e definir – se é que exista uma definição - era o tal estilo contemporâneo. A grande percepção daquela conversa foi que não conseguimos de maneira alguma definir o que é o estilo de capoeira contemporânea!
As variadas formas de jogo, as composições das baterias e os rituais estabelecidos sempre nos mostram que a capoeira é uma cultura de várias tradições, relacionadas a cada mestre e a cada grupo.  Os conhecimentos tradicionais e a filosofia de vida que tanto se fala na capoeira são muitas vezes trocados pelo modismo por uma parcela de capoeiristas que seguem o que conhecemos como cultura de massa ou como fala o Mestre Nestor Capoeira: “massificação do individuo, onde os valores máximos são a tecnologia e o dinheiro, e a cultura tem seu grande representante na televisão.”
Apesar de ser arriscado enveredar por este caminho não podemos desprezar esse momento onde a cultura de massa impera, onde o capital está acima de tudo, onde o lucro e a busca incessante pelos desejos pré-concebidos por essa alienação pré-meditada são a mola mestre do mundo e do Brasil especificamente, mesmo porque é muito difícil no mundo de hoje viver sem consumir a indústria cultural de massa. Mas como viver sem emergir e vivenciar estas novas proposições que estão a nos ofertar?
Isso me faz refletir que temos que exercitar o que Baudelaire fala: “... tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno no transitório.
Também não há como deixar de pensar e estar atento a condição de sermos repetidores de preceitos e ideais que a cultura de massa nos impõe. Esse é o risco que corremos e que muitos já absorveram e prontamente reproduzem. Os sujeitos esquecem suas próprias histórias de vida em detrimento a esta nova situação. Alguns chegam a mudar seus apelidos apenas porque trocaram de grupos. As falsas e ilusórias promessas da moda, como a fama, o status e o poder são aniquiladores do eu de cada um e faz com que esse sujeito se torne outro sujeito. Um novo sujeito sem história, sem tradição. Um sujeito que faz questão de esquecer seu passado. Um sujeito vendido e comprado a uma condição de ser. De ser igual, de ser repetitivo, de ser o mesmo sempre, robotizado em sua movimentação, alienado em um discurso criado a partir de idéias dos outros e não por um ato de pensar e refletir.
Assim se constrói um estereótipo do capoeirista contemporâneo do qual deve ser um sujeito que faça e reproduza a semelhança, no sentindo em que Foucault nos chama a atenção: A semelhança tem um “padrão”: elemento original que ordena e hierarquiza a partir de si todas as cópias, cada vez mais fracas, que podem ser tiradas. Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e classifica. O similar se desenvolve em séries que não têm começo nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não obedecem nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças em pequenas diferenças. A semelhança serve à representação, que reina sobre ela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer.
E assim os capoeiristas buscam seus estereótipos, conforme as regras impostas pelo meio em que convive.
Apesar de toda discussão que o tema gera sei que enquanto sujeito da capoeira e do mundo tenho que procurar entender essas mudanças que vem ocorrendo com nossa arte a partir da compreensão de que o fazer contemporâneo é algo transitório e efêmero porque ele é o hoje e que esta reflexão é importante para pensarmos quais tradições ou estilos adotamos por fundamento, pois corremos um grande risco de aprisionar a capoeira com características e referências que na verdade são particulares de cada escola, de cada grupo. Como é o caso de tocar e jogar Banguela pensando ser Benguela e vice e versa.
Parece-me coerente buscar o entendimento apontado por Konder; de que “nenhuma dessas criações pode ser adequadamente compreendida e assimilada pelas épocas que vieram depois delas sem um exame das condições específicas em que cada obra foi elaborada; cada uma delas possui uma ligação com sua gênese; mas, na maneira de expressarem o momento histórico em que nasceram, elas conseguem acrescentar algo ao processo histórico como um todo”.
Algo que fica muito claro após essa reflexão é o fato de ter sempre que me perguntar: O que me move na contemporaneidade enquanto sujeito da capoeira e do mundo?
E assim como disse Muniz Sodré, “a brincadeira ainda continua viva e tem muita coisa a ensinar”!
Então vamos começar a brincadeira, brincadeira de capoeira; vamos começar a brincadeira, brincadeira de capoeira...
Axé!!!!!

Orismidio Duarte – Caboré Terreiro Capoeira.

BIBLIOGRAFIA:
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: O Pintor da Vida Moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Textos Selecionados. Org. Castro, Celso. Rio de Janeiro. Zahar. 2005.
CAPOEIRA,Nestor. Capoeira: Pequeno Manual do Jogador. Rio de Janeiro: Record, 2002
CAMPOS, Helio. Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba. Salvador. EDUFBA. 2009.
COSTA, Reginaldo da Silveira. Capoeira: O Caminho do Berimbau. Brasília. Editora Dot Ltda. 2000.
FOUCAULT, Michel. Isto não é um Cachimbo. São Paulo: Paz e Terra, 2014
LIMA, Manoel Cordeiro. Dicionário de Capoeira. Brasília, Edição do Autor. 2005.
MAGALHÃES FILHO, Paulo Andrade. Jogo de Discursos: a disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana. Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciências Sociais - UFBA. Salvador, 2011.
KONDER, Leandro. O que é Dialética. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.